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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Amazônia: entre o inferno e o paraíso.

Na filosofia, o conceito de humanidade só passa a ser entendido como tal, a partir do século XVII. Antes disto ele não existia. Porém, quando foi concebido, o Homem acabou sendo isolado da natureza. Agora a ciência descobre que na Amazônia Homem e natureza não se separavam: faziam parte do mesmo universo.

Boa parte das ciências modernas é baseada no Humanismo renascentista e no positivismo do século XIX. Isto é: desde o Renascimento (ocorrido na Europa do séc. XVII) o Homem passa a ter a sua própria natureza (antes ele estava submetido aos desígnios de Deus, sendo Dele reles imagem decaída); e do século XIX em diante, o positivismo diz que só é válido aquilo que está baseado na experiência. Ora, o Humanismo colocou a idéia do Homem livre no centro do Universo, contudo isolado e completamente fora de tudo que fosse natural. Foi assim que o Homem tornou-se transcendente e senhor da natureza e desenvolveu uma ciência cuja história é a narrativa do vitorioso progresso do seu controle sobre ela.
Como conseqüência, o domínio e os saberes sobre o selvagem passam a ser o pano de fundo que levou inúmeros estudiosos a irem buscar os processos que conduzem a humanidade da barbárie à civilização, excluindo desta trajetória, porém, qualquer elo do humano com o natural. Para esses estudiosos, a busca não era a compreensão da integração ou desajuste do Homem com a natureza, mas dos meios de domínio com os quais diversas culturas e sociedades foram capazes de se sobrepor aos ambientes e aos seres. A histórica dessa ciência mostra, em um primeiro momento, como as pessoas tentaram se livrar da imprevisibilidade dos eventos naturais; no momento seguinte, como tentaram dominar os fluxos da natureza; por fim, como se apropriaram de suas riquezas. Por isto falaram da conquista do fogo, da domesticação de plantas e do controle de águas, solos, florestas e gentios e, agora, de inseminações artificiais e da produção de clones e andróides.
Apesar do divorcio entre o Homem e a natureza, o Humanismo despertou a consciência da sociabilidade humana e, paradoxalmente, o ideal de um retorno a uma natureza mítica, cuja representação mais perfeita era o “bom selvagem” do Novo Mundo, que no Renascimento, fora recentemente descoberto. O “bom selvagem”, especialmente identificado com os nativos das regiões tropicais, além de ser avesso às guerras e aos conflitos interpessoais, viveria em perfeita harmonia com a natureza, graças à sua fartura e exuberância. Constituindo uma cultura fundadora ideal, que no mundo europeu em expansão teria se perdido em algum momento da história de sua civilização, esse ideal acaba por gerar outro mito: o do Paraíso Tropical. Cem anos depois do Renascimento, no Romantismo (que apoiava a subjetividade e o individualismo), a percepção da sociabilidade humana alcançará um novo status com o surgimento de disciplinas científicas voltadas para o estudo da sociedade e da cultura.
A idéia do “Bom Selvagem” foi levado mais à sério na política do que na ciência e foi na efervescência intelectual dos séculos XVIII e XIX, com a antropologia, que o mito do “Paraíso Tropical” se desfaz de vez. Na ocasião, diversos pensadores, entre os quais se destacou Franz Boas (1858-1942), mostraram não só a diversidade humana, mas também que muitos comportamentos só poderiam ser justificados na própria cultura observada. Além disto, mostraram que seus comportamentos, apesar de serem interpretados como “primitivos” e “bárbaros” pelo etnocêntrico olhar europeu, eram fundamentais para a identidade do povo. No entanto, para felicidade dos pensadores europeus, o evolucionismo social emergente afirmou que os comportamentos mudavam com o tempo, refinando-se e eliminando, progressivamente, traços indesejáveis. Ou seja, duzentos anos depois de separar o Homem da natureza, as disciplinas humanistas pareceram provar que a humanidade era distinta da natureza por conta da intermediação artificiosa da cultura, que poderia eliminar dela qualquer traço da selvageria natural.
O Jardim Tropical
O mito do “Paraíso Tropical” encontrou bastiões de resistência, como na representação social do Brasil enquanto nação, pautada no mito fundador do “Paraíso Tropical”, construído desde 1500 com a chegada dos portugueses ao Brasil. É verdade que apesar de reforçada em pleno século XX, na Semana de Arte Moderna dos anos 20 e da Tropicália na década de 70, esse mito foi minado pelo conceito de “inferno verde”, atribuído por Guimarães Rosa à Amazônia, em obra póstuma de 1976 (Paraíso Perdido). Este conceito foi apropriado pela ditadura militar para justificar a “conquista da Amazônia”, em nome da civilizada nação brasileira. Hoje em dia, sarcasticamente, o mito só circula nos discursos da propaganda turística, da música e das novelas, dentre outros, para referir-se apenas à costa litorânea, onde se localiza a maioria da população urbana brasileira e onde Natureza, além de ser um entretenimento de televisão e de parques zoológicos, refere-se apenas a tubarões e feras africanas.
A falência do mito do paraíso tropical levou ao descrédito o mito do bom selvagem, uma vez que a maior parte da população passou a viver em cidades. Entretanto, tornou-se comum pessoas de cidades localizadas em outras regiões ou países, acreditarem em jacarés e outros animais “selvagens” circulando pelas ruas das cidades amazônicas. Na verdade, o conceito original de “selvagem”, termo que existe desde a Antiguidade, fora aplicado pelos gregos aos despossuídos de pólis ou aos que viviam em florestas ou desertos e eram “no agrios”. Isto é, não tinham área cultivada. Portanto, durante a ditadura militar, o mito do paraíso tropical não condizia com o Brasil industrializado e urbano que então se consolidava e, ao mesmo tempo, a população brasileira se distanciava cada vez mais da vida rural.
Convém observa, porém, que apesar do mito do paraíso tropical pregar o retorno a uma origem idílica, esse suposto paraíso remetia sempre a uma fase da civilização na qual as pessoas já teriam dominado o selvagem, cultivavam a terra ou levavam seus animais domésticos para pastar. Aliás, a palavra Éden, que foi traduzida para o grego e herdado pelo latim com o significado de “jardim”, parece ser derivada da palavra suméria “E.DIN”, traduzida por alguns estudiosos como campo cultivado. Ainda que a palavra nos chegue do Oriente, Gregos e Latinos entenderam este lugar como sendo de delícias. O Jardim é sempre a evocação da Vida e da fecundidade em superabundância. Contudo, o velho testamento sugere que só estaremos no Paraíso no sétimo dia da criação, o Dia do Repouso do Criador. Isto é, o criador já preparou tudo e agora descansa esperando o fruto do seu trabalho. O paraíso-jardim é, por conseguinte, um artefato, um lugar construído para o recolhimento e a felicidade após árduos dias de trabalho. “Deus todo poderoso começou por plantar um jardim.” (Francis Bacon, 1561-1626) e depois descansou para usufruir de seus frutos no Paraíso que ele mesmo construiu.
No Egito, a existência do mito do paraíso está documentada desde o século XXIV a.C.. O objeto específico do mito é a ordem do mundo. De fato, os mitos da criação não visam explicar a origem do mundo, mas afirmar a vitória da ordem contra o caos e assim legitimar a supremacia da civilização sobre o selvagem. A ordem do mundo, enfim, é o resultado da vitória de Deus sobre o caos, na batalha contra a desordem primordial, absoluta. Ou, por outro ângulo, da transformação da natureza selvagem em um artefato humano. Consequentemente, na ausência de um jardim, toda vez que se fala de selvagem, fala-se de uma natureza sem humanidade, de uma natureza onde o Homem não está incluído e nem faz parte da sua existência.
Por tudo isto, quando pensamos a Amazônia focando a integração do Homem aos seus diferentes ambientes, além de considerar que esses ambientes são o ‘palco’ natural de sua evolução, também devemos pensar que esses mesmos ambientes são uma construção cultural e que estamos dentro e não fora da natureza. Mas, para pensarmos assim, antes de qualquer coisa, é necessário superar pré-conceitos míticos milenarmente enraizados nas bases do pensamento humanista. Concomitantemente, ao pensarmos na natureza do espaço amazônico e suas paisagens como uma construção, devemos pensá-la a partir da integração entre o Homem e ela.
Apenas aquilo que nós mesmos construímos.
Mesmo que o mito do “Paraíso Tropical” tenha encontrado solo fértil no imaginário popular, foi comum na ciência pensar que a floresta amazônica teria ficado intocada, sem sofrer qualquer influência humana, até a ascensão das sociedades agricultoras. E que as antigas intervenções humanas, quando finalmente ocorreram, só teriam alcançado pontos isolados, em áreas reduzidas, localizadas às margens dos principais rios da região. A Amazônia seria uma região exclusivamente “natural”, não agrária, onde o Homem além de não fazer parte dela, teria sido repelido pela dificuldade de adaptar-se aos seus supostos parcos recursos não domesticáveis. Com isto consolidou-se a idéia de que o Homem não fazia parte da sua natureza. A Amazônia seria, enfim, selvagemente “virgem”!
Datando do século XIX, as primeiras investigações arqueológicas na Amazônia ficaram restritas aos artefatos de grande apelo artístico, como as urnas, utensílios e outros objetos cerâmicos, bem como estatuetas e pingentes feitos de rochas e cristais, atribuídas a povos de cultura complexa, mas sem uma agricultura intensiva provida de arado. Os pesquisadores pioneiros visavam, principalmente, a formação de coleções para os museus. Politicamente, eles se aliavam às idéias de superioridade das civilizações agricultoras e, com isso, negavam a condição de civilizados a todos aqueles que prescindiam da agricultura (de arado) e da cultura material associada a ela, identificando-os com a preguiça e a barbárie. Com essa identidade, os possíveis caçadores-coletores por acaso existentes na Amazônia não apresentavam qualquer apelo para os acadêmicos de então.
Essa situação poderia ter mudado quando as pesquisas efetivamente científicas tiveram início com os cientistas norte-americanos Betty Meggers e Clinford Evans, ainda na primeira metade do século XX. Infelizmente, mesmo através de outra ótica, as técnicas de agricultura consagradas no Velho Mundo continuaram sendo referência, de modo que as evidências de cultivo dos povos amazônicos foram resumidas à simples práticas de horticultura. Já os estudos voltados para os caçadores-coletores permaneceram escassos, sob o surrado argumento de que a Amazônia seria um lugar inóspito para a adaptação humana e de que a presença do ser humano nela seria rarefeita e recente. Para justificar a ocorrência de vestígios materiais de culturas formadas por complexas sociedades, esses pesquisadores afirmaram que elas teriam migrado de outras regiões, como a andina e a caribenha, cujas populações, longe das selvas, teriam desenvolvido culturas mais sofisticadas. Portanto, além da gênese dessas sociedades não ser nativa, ela não poderia ter sido o resultado da evolução local de sociedades pioneiras, porque mesmo que estas tivessem existido, não teriam conseguido superar as barreiras naturais representadas pela infernal floresta tropical.
Na década de 1990, outra pesquisadora norte-americana, Anna Roosevelt, mostrou que as sociedades amazônicas tiveram um longo tempo de desenvolvimento local. Porém, esse desenvolvimento teria ficado restrito a áreas especiais, como as várzeas, ricas em recursos naturais favoráveis à exploração humana. Roosevelt argumentou que as conquistas sociais, materiais e espirituais das populações amazônicas complexas seriam o resultado do sucesso adaptativo de costumes e práticas a um ambiente mais favorável, de populações amazônicas precedentes. Para ela, a evolução sociocultural das populações amazônicas só foi possível graças à existência das várzeas, que eram ecologicamente favoráveis, supostamente, ao cultivo intensivo do milho. Ou seja, fora dali o homem permaneceu no limite entre o selvagem e o civilizado, de modo que a expansão das sociedades complexas para além das várzeas era impossibilitada pela natureza indomável das terras firmes. Por outro lado, ela não foi capaz de reconhecer a excelência do cabedal técnico da agricultura praticada na Amazônia, propondo a existência de um cultivo especializado no cultivo de uma planta exótica (o milho), sobre a qual nunca apresentou evidência concreta.
Podemos dizer que essas idéias nada mais foram do que a reafirmação tardia do divórcio renascentista entre o homem e a natureza e também da impregnação da mitologia da natureza selvagem no inconsciente, que ainda predomina nas teorias científicas e que exerce influência não só nas ciências sociais, como também nas ciências da terra. Entretanto, estudos recentes nas mais diversas partes do mundo vêm mostrando que a influência humana sobre a natureza não só é uma condição da sua existência, bem como condição da própria evolução coletiva das espécies. Por outro lado, se a evolução cultural das antigas populações Amazônicas resultou em sociedades organizadas por agentes que dominavam práticas e técnicas de manejo e cultivo de plantas domesticadas, é porque elas percorreram uma longa duração onde acontecimentos históricos precedentes desenvolveram e conquistaram essas práticas e técnicas, localmente e milenarmente.
Desde a última década do século XX, pesquisas arqueológicas vêm comprovando que a floresta tropical, mesmo há milhares de anos, nunca foi um fator restritivo para o progresso das populações humanas que nela viveram. Isto é: uma restrição ao florescimento de novas e melhores possibilidades; uma barreira ao preenchimento de todo nicho disponível; um obstáculo ao desenvolvimento de organizações sociais cada vez mais elaboradas. Muito pelo contrário, estudos recentes têm confirmado que não havia uma diferença marcante na adaptação dos povos que habitavam a terra firme daqueles que habitavam as várzeas. Inclusive, hoje se descarta a idéia de que dois ecossistemas distintos e excludentes diferenciavam os povos amazônicos. Na Amazônia, a exploração dos recursos naturais, por parte das populações antigas, inclui um território com ecossistemas diferenciados, explorados complementarmente. Assim, na verdade, a ocupação territorial era o modo pelo qual tanto várzea, quanto interflúvios e terras firmes eram economicamente conectadas e culturalmente integradas.
Esses estudos atestam a grande importância do conhecimento das populações indígenas e tradicionais sobre o comportamento da floresta tropical e, principalmente, sobre a formação de alguns de seus ecossistemas. Ecossistemas que, por conta disto, seriam muito mais jardins do que selvagens e estariam muito mais próximos do paraíso do que do inferno. Ou seja, constituem paisagens artesanais. Eles também mostram que culturas e saberes tradicionais podem contribuir para a manutenção da biodiversidade de muitos ecossistemas amazônicos. Significativamente, direta ou indiretamente, os estudiosos também afirmam que, em numerosas situações, esses saberes são o resultado de uma co-evolução entre as sociedades e seus ambientes naturais, permitindo um equilíbrio criativo entre ambos.
Foi o aperfeiçoamento na exploração e uso dos recursos naturais que teria levado as antigas sociedades de caçadores-coletores às sociedades agricultoras posteriores, cujos produtos, conseqüentemente, derivaram dos recursos naturais conquistados pelos primeiros. A afirmação de que os Homens não eram passivos aos ambientes, mas interferiam neles segundo suas necessidades e crenças, implica em reconhecer que há toda uma dinâmica entre o mundo natural e a imagem socialmente construída da paisagem, que permanece permanentemente em obra em favor dos interesses culturais, sociais e políticos humanos. Esses interesses se expressam naquilo que o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) chamou de “habitus”, consistindo num objeto em que os agentes sociais – que fazem parte do objeto - incluem o conhecimento que têm do objeto e a contribuição que tal conhecimento trás à realidade do objeto. Assim, na dinâmica entre o mundo natural e a imagem social da paisagem, o ambiente se torna o objeto que o Homem conceitua ao conceituar a si mesmo. Portanto, os ecossistemas amazônicos sobre os quais os Homens intervieram foi a construção social do mundo, em que os agentes sociais, foram eles próprios, em sua prática coletiva, os sujeitos de atos de construção desse mundo.

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